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Os textos que compõem este volume da coleção Histórias das músicas no Brasil têm
o Nordeste e sua história musical como foco de reflexão. Pensar no Nordeste como
um espaço geográfico único é retomar às reflexões do historiador Durval Muniz sobre
a constituição e a identidade desse mesmo espaço. O termo foi usado pela primeira
vez em 1919 para identificar uma área comum afetada pelas intempéries climáticas,
portanto, uma invenção política e geográfica de uma espacialidade. Se, de um lado, a
Região Nordeste surge de uma paisagem imaginada para o país em um tempo posterior
a sua própria constituição territorial, por outro lado, ela é o resultado da multiplicidade
de vidas, histórias, práticas, costumes que, em seu apagamento, dá origem ao discurso
imagético para a região1. É sobre esse Nordeste plural, de histórias não lineares, de
tradições, singularidades e conexões que os textos presentes neste e-book se propõem
a refletir. “Embora as secas, como a mestiçagem, continuem a fazer parte de qualquer
história da região, não são mais os fatores naturais que definem, que dão identidade,
que estão na origem da região. São os fatores históricos e, principalmente, os de ordem
cultural”2.
Partindo da premissa de que o Nordeste é menos um lugar e mais um conjunto de
características comuns, com começo histórico, com suas divergências e aproximações3,
questiona-se: como se deram as práticas musicais nessa espacialidade ao longo dos
séculos de formação do território e da nação chamada Brasil? Contextualizada de forma
particular nos distintos estados, essa pergunta perpassa implicitamente cada texto deste
volume e das pesquisas musicológicas dela resultantes, com discussões que transcorrem
assuntos situados entre o período colonial brasileiro e a atualidade. Embora seja latente
esse questionamento, ele certamente não pode (nem poderia) ser respondido em sua
plenitude. No entanto, a leitura dos textos que compõem este volume ajuda-nos a
constatar que o fazer musical nessa região é plural e que sua memória musical dialoga
com a de outras regiões do Brasil. Por muito tempo, o Nordeste foi descrito pelas outras
regiões brasileiras, por meio de imagens e nas mídias, como um lugar árido, baldo e
distante, como um bloco uno, pouco conhecido. A historiografia das diversas áreas do
conhecimento científico tem contribuído com uma nova e ampla visão sobre o Nordeste.
Nesse sentido, a musicologia vem também cooperando com narrativas que apontam
para a pluralidade dessa região e que fazem ser possível afirmar que existem vários
“nordestes” dentro do Nordeste brasileiro.
Este volume situa-se dentro da coleção Histórias das músicas no Brasil como uma
valiosa ferramenta de pesquisa. Por meio da leitura dos capítulos, vislumbramos um
crescimento da historiografia musical do Nordeste e, ao mesmo tempo, percebemos os impactos que a musicologia brasileira vem proporcionado para o incremento das
narrativas sobre a música na região. Nesse crescimento, intensificado nos últimos dez,
vinte anos, é importante referenciar, como ponto de partida, a preciosa contribuição dos
estudos do padre Jaime Diniz, musicólogo pernambucano que, ao longo do século XX,
muito contribuiu com a memória musical nordestina.
Na leitura dos textos, é possível perceber ainda uma expansão metodológica
quanto ao uso de fontes não musicográficas pelos pesquisadores, suprindo a ausência
de fontes musicais escritas ou audiovisuais para temas anteriores ao século XX. Da
pesquisa documental pautada em fontes extramusicais, o uso mais comum foi dos escritos
memorialísticos, mas é possível identificar, também, a utilização das fontes arquivísticas,
iconográficas, impressas, particularmente de fontes hemerográficas (periódicos e jornais),
bem como das fontes bibliográficas, a citar, as crônicas dos viajantes.
Este volume contou com a generosa colaboração de pesquisadores do Maranhão,
Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Está
organizado em duas seções. A primeira parte é dedicada às práticas musicais em contextos
históricos diversos, de registro escrito ou de tradição oral” com artigos caracterizados
por narrativas mais abrangentes e panorâmicas acerca de um estado. A segunda parte
é voltada à “história das instituições, dos músicos e das obras em seus contextos locais”,
sendo, portanto, mais específica, propondo um aprofundamento em algum aspecto
determinado. Embora cada capítulo apresente suas particularidades, são vários os pontos
comuns entre as diferentes narrativas. Sobressaem as bandas de música (filarmônicas e
militares), as trajetórias de músicos que desempenharam diferentes tipos de atividades
musicais e transitaram em contextos distintos, a riqueza da produção musical regional,
a música dos povos nativos dada a conhecer pelos registros dos jesuítas e a música
religiosa ocorrida nas igrejas.
O pesquisador Sérgio Dias, em seu capítulo intitulado “A história da música em
Pernambuco: uma narrativa ainda por se afirmar” nos convida a um passeio musical pela
história da música pernambucana, por meio de uma organização cronológica dos fatos,
desde o período em que Pernambuco era uma capitania. O fio dessa narrativa passa
pela música europeia trazida pelos padres jesuítas, as influências dos holandeses sobre
a música em Pernambuco, inclusive com a fundação de um conservatório, a atuação
das ordens religiosas laicas e regulares sobre as práticas culturais e musicais, desde o
século XVII. Já em relação aos idos dos setecentos, o autor apresenta parte da trajetória
e produção musical de músicos como padre Ignacio Ribeiro Noia e Luís Álvares Pinto.
Compõem a cena musical oitocentista apresentada pelo autor a execução de ópera em
Recife, as primeiras tipografias, estabelecimentos musicais comerciais e instituições de
ensino.
Daniel Lemos Cerqueira, em “Práticas e contextos da(s) música(s) no Maranhão”,
também propõe uma visão panorâmica que engloba diferentes contextos e práticas
musicais no estado. O autor traz como ponto de partida algumas evidências sobre música dos povos originários e a presença jesuíta no Maranhão. Reflexos da música católica e
da influência dos religiosos de diferentes ordens sobre o ensino de música naquela
província desde o século XVII são temas mencionados no texto. Cerqueira confere ao
leitor uma listagem com músicos que atuaram como chantres e mestres de capela na
Sé do Maranhão, desde 1629 até cerca de 1910. A herança africana na música local
é evidenciada por meio das toadas. Além disso, o autor também destaca importantes
manifestações culturais maranhenses, como o bumba-meu-boi, prática originária das
comunidades indígenas e africanas. Formam ainda as tramas desse rico panorama
aspectos de música urbana, como as bandas filarmônicas do Maranhão e alguns dos
repertórios que soavam ao longo do século XIX e o início do século XX, localmente.
Inez Beatriz de Castro Martins Gonçalves apresenta o texto “Práticas musicais
e paisagem sonora do Ceará entre os séculos XVII e XIX”, no qual discute a música
desde os primórdios do estado cearense até o século XIX, utilizando-se dos conceitos
de “paisagem sonora”, “história conectada” e “história comparada” para suprir a ausência
das fontes musicográficas locais e refletir sobre o passado da música do Ceará anterior
a 1890. Dividida em três seções, a autora discute inicialmente a paisagem sonora e
os registros musicais descritos nas cartas ânuas dos jesuítas e nas imagens deixadas
pelos viajantes da época, para assinalar que a música no Ceará nos séculos XVII e XVIII
esteve ligada à música dos povos nativos, à música religiosa, à música militar e à cultura
relacionada à economia da pecuária. A segunda e a terceira seções dedicam-se a discutir
sobre a música no século XIX no estado, com ênfase particular para as bandas civis na
primeira metade do século e a banda de música da Polícia Militar do Ceará, com seus
músicos e repertórios, a partir da segunda metade. Na parte final, são apresentadas as
duas partituras mais antigas do Ceará que estão preservadas no arquivo centenário da
banda policial: a marcha A corporação, de Euclides Paiva, de 1897; e a valsa Alice, de
compositor anônimo, de cerca de 1890.
João Berchmans de Carvalho Sobrinho e Samuel Mendonça Fagundes são os
autores do capítulo “Breves considerações para uma história da música no Piauí”. Os
pesquisadores discutem as práticas ocorridas nas cidades de Oeiras, primeira
capital da antiga província; Parnaíba, maior cidade litorânea do Piauí e por onde
circularam viajantes atraídos pelo crescimento econômico local que ajudaram a
desenvolver os grupos corais, bandas e orquestras; e, finalmente, Teresina, cidade
que se tornou a capital a partir de 1852 e onde surgiram as primeiras casas de
teatro e de concerto da região. O texto apresenta ainda a partitura mais antiga do
estado, um “Hino da Libertadora Barrense”, composta em 1884, por Leovigildo
Belmonte de Carvalho, na cidade de Barras. Utilizando-se de um amplo corpus
documental, os autores traçam a história musical no estado e suas influências,
destacando as práticas urbanas desenvolvidas no período delimitado, resumidas em
três grandes tópicos: a música de caráter cívico e solene, representadas pelas
bandas estudantis e militares; a música de concerto, com destaque para os clubes
musicais que surgiram a partir d e1 907, compostos em grande parte por mulheres; e a música teatral. Finalizam o texto apresentando a biografia de alguns músiocs
locais, nascidos ou atuantes no Piauí.
Ainda na primeira seção do livro, Erivan Silva e Eurides Santos apresentam um
interessante estudo intitulado “Coco de roda: música, resistência e cosmovisões afroindígenas
na Paraíba”. O objetivo central dos autores é discutir a presença efetiva do
coco de roda no Nordeste, com foco na Paraíba, evocando aspectos musicais, culturais,
de gênero, religiosos, sociais e de sociabilidade. A pesquisa consiste em uma importante
contribuição para a compreensão e a memória em torno do coco. Ao longo do texto,
são apresentadas questões de identidade e a ligação entre o coco de roda e o culto
da jurema. Além disso, os autores propõem uma reflexão sobre a presença feminina,
especialmente da mulher negra e indígena no âmbito da cultura popular. Características
musicais das canções cantadas no coco de roda, como a letra, a forma musical, o desenho
melódico e as práticas como a improvisação são também analisadas pelos autores. A
ancestralidade dos cantos que formam essa tradição nas terras paraibanas reflete a
diversidade musical local, cuja origem remete ao período colonial brasileiro, bem como
evidencia a resistência da música negra através dos séculos.
Fechando a primeira parte do e-book, a musicóloga Elba Braga Ramalho trabalha as
poéticas musicais de tradição oral nordestina, como a cantoria e o aboio dos vaqueiros,
para escrever o texto “Alberto Nepomuceno, Juvenal Galeno e a tradição poético-musical
nordestina”. Deslocando o seu olhar de pesquisa da capital Fortaleza para as cidades do
interior do estado do Ceará, a pesquisadora aponta o cotidiano do sertanejo nordestino
do século XIX, ligado à economia de criação do gado, como referencial para as atividades
musicais que se desenvolvem ao redor desse universo no período. A autora estabelece
a ligação entre o compositor Alberto Nepomuceno e o poeta popular Juvenal Galeno,
para evidenciar os elementos estruturais de tradição oral presentes no cancioneiro de
Nepomuceno e na poesia de Galeno. Ao longo do texto, Elba Braga Ramalho discorre
sobre a modalidade poético musical popular denominada “cantoria”, suas características
musicais e sua estruturação poética, bem como sobre o canto do aboio. Por fim, analisa
três canções que Nepomuceno musicou usando os poemas de Galeno para apontar a
influência e os resquícios de memória de uma tradição popular na obra do compositor
cearense.
A segunda parte do e-book tem início com o texto de Marcos dos Santos Moreira:
“Alagoas, música e tradição nordestina: uma concisa revisão bibliográfica histórica
musical”. Por meio de revisão de literatura, o pesquisador aborda aspectos da cena musical
alagoana de início do século XIX alcançando o nosso século. Nesse sentido, menciona
bandas filarmônicas, músicos que compõem a cena da música clássica e popular, bem
como importantes mestres ligados à cultura popular. São destacados ainda a pesquisa
sobre a presença feminina nas bandas de música ao longo do tempo; os impactos do curso
de Música da Universidade Federal de Alagoas e as ações que vêm contribuindo com o
fazer musicológico local, como é o caso do Centro de Musicologia de Penedo (CEMUPE). No capítulo “Música e Igreja Católica no Rio Grande do Norte: dos primórdios do
catolicismo potiguar às hipóteses sobre o passado musical instrumental”, o pesquisador
Antonio Tenório Sobrinho Filho traça um panorama da música ocorrida no estado, dando
enfoque para a música católica instrumental de sopros. Seu foco temporal parte de fontes
do fim do século XVI que registram a fundação da cidade de Natal com uma missa no
ano de 1599. Dedica-se, inicialmente, a refletir sobre a música executada por jesuíticas
e por povos nativos para apontar as práticas religiosas potiguares, com o uso do canto,
instrumentos de sopro e repertório. Na segunda parte de seu texto, o foco é a música
instrumental religiosa tocada nos templos católicos. Estabelece o marco de 1909, quando
da criação da diocese de Natal, fato que impulsionou a criação de vários municípios
potiguares. Nessa parte do capítulo, dá ênfase ao repertório tocado pelas bandas de
música, particularmente de hinos dos padroeiros de várias cidades do Rio Grande do
Norte, apresentando a imagem das partituras e testificando a existência de uma prática
de sopros nos ambientes religiosos ligados à religião católica do estado. Por fim, Antonio
Tenório recupera a trajetória de vida de dois importantes religiosos e compositores que
atuaram no estado: dom Marcolino Dantas e o cônego Amâncio Ramalho.
Thais Fernanda Vicente Rabelo Maciel apresenta o capítulo intitulado “Entre
corporações e músicos em Sergipe oitocentista: em busca de um panorama da atividade
musical provincial (1820-1889)”. Partindo do contexto de uma província de Sergipe
situada no século XIX, a autora procurou pontuar algumas das bandas centenárias
locais, evidenciando a relevância da Música do Corpo Policial de Sergipe, banda militar
mais antiga do estado e que viria a incentivar a criação das bandas filarmônicas. O
capítulo também destaca alguns dos músicos que contribuíram com a atividade
musical sergipana naquele período e que contaram com o reconhecimento de seus
contemporâneos. A trajetória e produção dessas personagens reais enriquecem nosso
conhecimento sobre a música oitocentista brasileira. Perpassam a narrativa a formação
de agremiações musicais na região, a presença da ópera em Sergipe, repertórios que
refletiam os “sucessos” musicais da época e uma diversidade de gêneros, bem como a
importância dos acervos musicais para a pesquisa musicológica.
O texto escrito por Paulo Castagna e Alexandre Cerqueira de Oliveira Röhl, “A
permanência do solfejo heptacordal de Luís Álvares Pinto (1719-1789) em duas artes de
música pernambucanas do século XIX”, faz-nos retornar a Pernambuco. Mais do que isso,
evidencia a existência de duas obras dedicadas ao estudo da música (mais precisamente
ao solfejo), possivelmente escritas entre os séculos XVIII e XIX, cuja produção as localiza
no Nordeste brasileiro: Arte de solfejar e Arte de música. A pesquisa buscou contribuir
com o conhecimento, especificamente em torno de duas obras sobre teoria da música
que foram produzidas em Recife na primeira metade do século XIX. A produção e
conteúdo dessas “artes” teóricas são a tônica da análise. Assim, nesse capítulo os autores
apresentam uma cuidadosa descrição formal dos referidos documentos, discutem
questões de procedência e analisam o conteúdo das obras. O estudo apontou para uma relação de continuidade e impactos dos ensinamentos teóricos do músico Luís Álvares
Pinto, bem como sua relação com os músicos Francisco Januário Tenório e Tomás da
Cunha Lima Cantuária. Para além de uma diversidade de fontes, parte importante da
investigação está pautada na pesquisa do padre Jaime Diniz.
Longe de abarcar a totalidade dos estudos musicológicos sobre a região, este
volume reflete, sim, parte importante dessa produção. O Nordeste de Luís Álvares Pinto
(1719-1789), Nísia Floresta (1810-1885), Maria Firmina dos Reis (1822-1917), Gonçalves
Dias (1823-1864), José Annunciação Pereira Leite (1823-1872), Alberto Nepomuceno
(1864-1920), Zizinha Guimarães (1872-1964), Graciliano Ramos (1892-1953), Josias
Chaves Belleza (1898-1997), Patativa do Assaré (1909-2002), Jaime Diniz (1924-1989),
João Mohana (1925-1995) e tantos outros que contribuíram ativamente com a cultura,
e mais especificamente, com o fazer musical. As pesquisas apontam o quão viva e
pulsante era a cena musical nordestina desde o século XVI, do litoral ao sertão. Por
meio deste volume, os autores e autoras apontam suas descobertas, hipóteses e anseios;
evidenciam elementos marcantes e também lacunas que precisam ainda de estudo e
aprofundamento, desembocando na conclusão de que ainda há muito a ser investigado
sobre o Nordeste musical brasileiro. |
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